Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Isto chateia-me: estou de acordo com o Tiago Moreira Ramalho. Eu, se fosse namorado de uma jovem com os atributos especiais que dizem ser os da que dizem ser a namorada de Edward Snowden e ganhasse os 300,000 dólares por ano e tivesse uma casa no Havai — espiava com dignidade. Mas eu sou um covarde que preza o seu emprego e já sabia que os americanos espiavam os europeus, que espiavam os latino-americanos, que não espiavam ninguém, que eram espiados pelos norte-americanos, que eram espiados pelos chineses, que não eram espiados pelos sauditas, que eram espiados pelo russos, que espiavam Hong Kong, que não espiavam o Laos nem o Cambodja. As histórias de espionagem são quase sempre de segunda ordem. E sim, Snowden não disse, afinal, nada que não soubéssemos: que os americanos espiam mal e são destituídos de qualquer tipo de cautelas e não sabem instruir agentes duplos porque acham que a guerra fria já terminou. Ora, a guerra fria não só não terminou como é agora uma autêntica orgia. Edward Snowden disse que os norte-americanos vigiam o Facebook, o Twitter, o Google, o velho Outlook, o iTunes e o Bar da Tina em Cascais. Parece-me altamente provável, tirando o Outlook, que até eu era capaz de vigiar de um servidor em Castelo Branco. Portanto, Snowden, meu caro, escreve um livro com o material e vive durante uns anos dos rendimentos numa das ilhas Curilas, aí no Pacífico profundo. Depois, vende o material de novo ao Equador.
O trivial chefe de Estado europeu poderá distrair-se (as demasiadas atribuições recolhem por vezes um certo excesso de atenção que impede o político de enxergar o evidente), mas é para isso que nós estamos cá, para ter a bondade de o auxiliar. No caso, um punhado de chefes de Estado pareceu esquecer que a espionagem é uma actividade que ainda se pratica. Conhecemos a falibilidade do pensamento indutivo, mas esta não era difícil: a espionagem é tão velha quanto a política; esperar que uma viva sem a outra só poderá ser resultado de cansaço exagerado (ou de uma leve propensão para a representação; evitaremos, contudo, especulações abusivas). Claro que a existência descarada de centrais de espionagem deveria ter dado pistas adicionais, mas podemos sempre esperar que um monstro como a CIA utilize o seu orçamento para actividades que estejam fora das suas funções específicas (tudo é possível; isto sê-lo-ia certamente). Devaneios à parte, os EUA espiam a Europa. A Europa, se o dinheiro ainda chegar, espiará os EUA. A China espia o resto do mundo. A Rússia vai tentando, com o que sobra do outro tempo. A América Latina não precisa. E a África, à partida, está preocupada com o conforto material das famílias dignas. Não serve de muito, portanto, fingir um grande choque quando tudo isto se torna evidente, principalmente num tempo em que tudo é facilmente acedido a partir de um computador com ligação à Internet.
Se a espionagem política é uma banalidade, uma espécie de elefante que se mantém a tomar o bom chá com a gente, a espionagem a civis é uma história um tanto ou quanto distinta. E é aqui que Snowden tem a hipótese de entrar e, com algum jeito, aproximar-se do apetecido estatuto heróico. Pois se o cidadão comum, ao entregar montanhas de factos da sua vida privada a bases de dados virtuais de empresas como a Google, corre o risco de ver esses factos utilizados por Leviatãs mal-intencionados (ou apenas gulosos); não pode o Leviatã furtar-se ao risco de ver a sua actividade marota tornada pública. A espionagem, seja ela de que tipo for, corre permanentemente esse risco. E quando o bom Estado trata o cidadão inocente como inimigo (real ou em potência), tem de estar preparado para a materialização das contrapartidas. Temos, aqui, uma situação assaz demonstrativa. Os EUA levaram longe demais o esquema de espionagem a civis e um civil expôs a brincadeira. Nunca Snowden tornou públicas informações secretas (além, claro, do esquema de obtenção delas), não trouxe a público dados que estivessem na posse da NSA. Limitou-se à pequena acção revolucionária de denunciar. E denunciar publicamente, sem recorrer à burocracia acostumada que estava, presume-se, cansada de saber o que estava a acontecer sem que nada mudasse.
O sistema tem uma capacidade bastante considerável de se corromper. Mais: tem especial competência na arte de trazer essa corrupção para níveis que a tornam de difícil remoção. O crime no caso não está em quem denunciou uma actividade ilegítima, que por acaso era levada a cabo por um governo quase todo-poderoso, mas no governo quase todo-poderoso que não soube colocar freios à sua própria acção. A América é a terra dos checks and balances; convém, por isso, que não se esqueçam do mais importante de todos: o bom povo.