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«“ (...) E assim, Lídia, à lareira, como estando/deuses lares, ali na eternidade/Como quem compõe roupas/O outrora componhamos/Nesse desassossego que o descanso/Nos traz às vidas quando só pensamos/Naquilo que já fomos/E há só noite lá fora”. O poema de Ricardo Reis, impresso no enunciado do exame nacional de Português do 12.ºano, fez a vida negra aos estudantes; foi-lhes pedido para explicitarem os valores simbólicos do espaço e do tempo em que ocorrem as recordações do passado, mas alguns dos alunos, em vez de se referirem à lareira como símbolo de tranquilidade e de segurança e à noite como tempo de eleição em Ricardo Reis para representar a velhice e a aproximação da morte, preferiram explorar uma interpretação mais livre.
Alguns responderam que Ricardo Reis “pôs-se à lareira porque tinha vindo do trabalho e estava cansado”. Outros optaram por argumentar que o heterónimo de Fernando Pessoa “esteve a compor a roupa” e foi para a lareira para “descansar das lides domésticas”. Houve quem dissesse que “tinha acabado de passar a ferro”. E ainda: “O tempo em que ocorreram as recordações estava mau e por isso ele foi para a lareira”.» Jornal Sol.
Percebo as dificuldades substanciais de se preparar um exame nacional de língua portuguesa, com a necessária análise de poesia e prosa, sem que haja critérios mais ou menos uniformizadores. Ao mesmo tempo, contudo, aflige-me a ideia de uma interpretação certa (ou errada) de um objecto artístico. O declínio das humanidades nasce da tentativa de explicar aos aspirantes que o que eles estão ali a fazer é aprender factos. Daí a termos um jornalista (que certamente virá das «humanidades») a dar como certa a «lareira como símbolo de tranquilidade e de segurança» e assim, é um saltinho lamentável. Mesmo que os catraios sejam todos umas bestas.
Dan Brown com a mão na anca.
O renomado autor Dan Brown voltou a publicar um livro. O título é «Inferno» e já tem tradução em português, simpatia da Bertrand. Como é natural, por ser a repetição de uma ideia já compreendida por toda a gente, ainda que com umas diferenças de entoação e de gramática, uma forma assaz eficaz de sobreviver nos meandros da «crítica», amontoam-se os artigos a explicar, com mais ou menos cuidado, que Dan Brown é, infelizmente para o mundo, um péssimo escritor. A proliferação desta espécie de missa machuca a mente das gentes que não querem saber do Dan Brown para coisa nenhuma, mas que apreciariam a possibilidade de ler ocasionalmente uma boa crítica literária.
O mecanismo segundo o qual se criticam os livros de Dan Brown é comum àquele segundo o qual se criticam a maioria dos autores do género «mau». Pretende o excelente leitor que eu clarifique? Vamos lá a isso. Começamos por fazer alguns considerandos sobre a fama e a quantidade de livros que Dan Brown vende, confessando o nosso espanto por não ter o resto do mundo o bom gosto que nós mesmos temos no respeitante à boa arte literária. Maldizemos a condição humana e o mercado, que é consequência dela, por não vedarem a esta gente o acesso aos escaparates. No fim do lamento muito pertinente, porque é sempre necessário que discutamos a cultura nas plataformas de debate e exposição pública de ideias, começamos a nossa análise do livro. Nessa análise explicamos que Dan Brown tem uma má relação com a gramática, além de ter uma leve propensão para a repetição excessiva da mesma palavra ao longo das páginas. Seguimos para um ataque cerrado às figuras de estilo que, apesar de não dominar, o autor se esforça por martelar dentro do texto. Sinalizamos ainda, porque é o nosso dever fazê-lo, a inverosimilhança de pontuais peripécias e diálogos, pois é sempre necessário lembrar que não é concebível que um tipo comece a falar sobre irmandades secretas enquanto se esforça para descer por uma corda de um prédio em chamas. Se tivermos algum espaço livre ainda, podemos falar sobre o quão conveniente é a existência de uma história de amor tipificada, com uma mulher muito bonita no papel de ajudante do soberbo Robert Langdon, da invulgar forma física de um académico de meia-idade, ou da circularidade das personagens que têm uma fatal «falta de relevo».
Se a repetição simples de ideias feitas não fosse, já de si, coisa bastante (a menos que o crítico esteja, no fundo, a ensaiar uma mastodôntica figura de estilo, apoucando a simplicidade do livro através de uma crítica de uma simplicidade aparente, mas de elevada minúcia; convém, contudo, explicar cuidadosamente ao leitor que esta possibilidade é tão concebível quanto a ideia de Robert Langdon entabular uma boa conversa sobre irmandades secretas enquanto tenta descer por uma corda de um prédio em chamas), torna-se o espectáculo ainda mais infeliz quando a essa repetição se oferecem palcos privilegiados. A verdade é que este tipo de tralha jornalística é popular e os editores, apesar das vilezas da condição humana e do mercado, que é consequência dela, optam por lhes dedicar longas páginas. Foi o caso, por exemplo, do «Atual» desta semana, que permitiu que Clara Ferreira Alves expusesse com particular proluxidade os seus dizeres sobre o fenómeno danbrowniano. Peguemos neste caso particular para, em cima dele, teorizarmos sobre esta merda toda. (Tal como revelei um pouco mais acima, a temática em causa não me interessa, pelo que não li o artigo de CFA. Não faz mal.)
Clara Ferreira Alves apanhada de surpresa.
Quando foi a última vez que o «Atual» dedicou uma análise literária séria, de quatro páginas, a um grande escritor, esteja ele vivo ou morto? Não conto aqui com as entrevistas mais ou menos publicitárias e das «descobertas», mas falo de artigos de fundo sobre uma obra que mereça estar numa estante. As críticas literárias do Expresso, por regra, ocupam no máximo uma página, folgadamente partilhada com uma grande fotografia, para parecer mais bonito. Despacha-se, por exemplo, uma tradução de Nabokov (uma das muitas que a Relógio d’Água tem estado a publicar) numa tirinha de papel que, dada a parca largura, é insuficiente para uma apropriada limpeza do cu. Homero, Shakespeare, Tolstói, Brontë e até Pessoa são amontoados em comentários de contra-capa, tantas vezes com erros, em selecções que fazem as vezes de lista de supermercado do literato empenhado. Como não poderia deixar de ser, sobre eles despeja-se um conjunto de lugares-comuns que, por oposição às críticas a Dan Brown, lembram a profundidade das personagens, a mundividência que transborda, as verdades reveladas (para mais, remeto o bom leitor para um artigo de Rogério Casanova intitulado «Um dos Maiores et Cetera da Actualidade».) Excepcionalmente, Eça recebeu umas quantas páginas na semana passada, mas além da inevitável bonecada, foi tudo ocupado com entrevistas curtas aos bravos (entre os quais se conta precisamente Clara Ferreira Alves) investidos da nobre tarefa de prolongar a obra, com brincadeiras mais ou menos inspiradas e nenhum tratamento minimamente interessante da obra.
Entendamo-nos: todos, ou quase todos, os jornais literários fazem artigos jocosos sobre autores que se tornaram, pela fama, bobos da classe. Mal publicou o livro, Dan Brown foi gozado no Guardian, no Telegraph e em muitos outros lugares. Mas nenhum bom jornal ou suplemento literário pode dar-se ao luxo de dar mais importância a um jogral das letras que à boa literatura. Trate-se dos «Infernos» e da restante parafernália que o género publica na meia-dúzia de linhas que merecem e dêem-se as quatro páginas a um texto que valha o tempo despendido. De preferência, escolha-se, dentro do orçamento, um crítico que perceba alguma coisa do assunto.
Raquel Varela fixando a objectiva com olhar profundo.
Anda um espectro (há que fazer a apologia do cliché) pelo Portugal – o espectro da Raquel Varela. Diz que é doutora do ISCTE e percorre com alguma facilidade os meios de comunicação, poluindo-nos a mente simples com os seus devaneios complicados. Desta feita, a Doutora Varela (isto assim dá logo ares de Aerius e Paracetamol) foi amavelmente convidada pela Fátima Campos Ferreira para o grande debate da nação que é o Prós e Contras, consigo, todas as semanas. Lá no Prós e Contas, além da Doutora Varela, havia um rapagão com olho para o negócio que vende t-shirts para «países estranhos» como a Inglaterra (ninguém lhe perguntou a origem de tanta estranheza, para grande pesar deste vosso que vos escreve). Mal compreendeu a Doutora Varela que o rapaz não era um intelectual com vasta obra publicada no estrangeiro, mas sim um vil burguês, mandou que se interrompesse o bailado. Era importante, pelo menos para ela, esclarecer umas coisas. Então perguntou rapidamente ao Martim, tratando-o por tu, com uma proximidade que afronta, se por acaso as camisolinhas deles eram produzidas na China por gente a ganhar dois dólares por dia. O Martim disse que por acaso não, que era cá na terra, no nosso Portugal. Evidentemente, isso não bastava. A Doutora Varela lançou logo a questão importante: e os operários fabris, ganham salário mínimo? É que a organização do não-sei-quê diz que tal. O rapaz arrumou com o assunto e seguiu-se choradeira no blogue.
Agora que já alongámos o espírito e nos permitimos umas malandrices, vamos passar a proporcionar ao leitor curioso uma análise sólida e fundamentada da questão. Há três eixos (porque nós vemos a três dimensões – é importante para a compreensão da realidade) relevantes aqui. O primeiro prende-se com o valor do Martim Neves. O segundo prende-se com a razão da Raquel Varela. O terceiro prende-se com a desonestidade da Raquel Varela. Por partes. Um, dois...
Marie Antoinette.
Eu só sei do Martim Neves aquilo que as pessoas que viram o Prós e Contras sabem: é um miúdo de 16 anos que tinha uma coisa que gostava de fazer (desenhar trapinhos) e teve a ideia de arranjar ali uma ocupação, um negócio. Felizmente, e apesar da idade, teve algum sucesso. As roupas ganharam compradores, invadiram dois ou três mercados internacionais e o barquinho prospera. Diz que os estudos vão indo e, pelo que percebi, ainda patrocina um desportista qualquer. No topo de tudo, recorre a uma fábrica portuguesa para a confecção da mercadoria, mantendo tudo em família, como muito compete ao cidadão empenhado e patriota. O Martim, independente do que nos diga a história dos conflitos sociais, está a fazer, tudo leva a crer, algo de bom e de muito valor: investe numa ambição sua, não tem ar de explorar miseráveis e, à falta de prova em contrário, é respeitador da lei e da norma.
No que disse ao Martim Neves, Raquel Varela tem razão apenas numa coisa: o salário mínimo é baixo. Também é por isso que se chama salário mínimo – nunca, em momento algum o acharemos bom. Que se compare com facilidade o salário mínimo português com os dois dólares diários do sudeste asiático, já me parece um pedacinho desonesto, mas deixemos isso para o próximo parágrafo. O que é importante compreender é que o facto de ganhar um salário mínimo ser melhor que não ganhar salário nenhum não invalida que o valor seja baixo. A melhor hipótese nem sempre é uma boa hipótese, enfim. De qualquer forma, a discussão sobre o salário mínimo, ainda que importante, não foi pertinente. Mais não fosse por uma razão simples: é que na verdade ninguém ali tinha a capacidade de assegurar que quem produzia as tais roupinhas estava nessa situação. Mas de novo a terceira parte deste proveitoso artigo está a saltar-nos em frente. Dêmos-lhe, pois, espaço.
Bertrand Russel, enquanto assistia ao Prós e Contras.
A desonestidade de Raquel Varela no caso em questão é – utilizemos uma palavra catita – multidimensional. Torna-se inclusivamente difícil organizar o pensamento perante tudo isto. Para facilitar, vamos saltar por cima do tom acusatório com que lançou as perguntas. Vamos também contornar a insistência em dizer que são chineses a fazer a roupa, quando todos sabemos que foram portugueses. Vamos ainda esquecer que colocou quase no mesmo patamar os salários abaixo do limiar da pobreza e o salário mínimo português. Vamos apenas ao essencial: Raquel Varela questionou a moralidade da actividade profissional de Martim com base na possibilidade de haver, devido a ela, pessoas a receberem o salário mínimo. Isto, só assim, sequinho, sem comentários sobre as viagens e as bolsas de Raquel Varela, já nos chega para uma boa conversa. Ora vejamos. Em primeiro lugar, e porque isto é o mais simples, mais directo, mais singelo, é preciso dizer que o salário mínimo, ao existir, traz como consequência natural que algumas pessoas o recebam. Se ninguém recebesse o salário mínimo, isso significaria que o valor era tão baixo que nem os porcos exploradores o pagariam. O salário mínimo, digamos assim, está lá mesmo para «ser usado». Tem como objectivo vedar situações de exploração, entendendo-se, por isso, que pagá-lo não constitui exploração. Claro que podemos divergir quanto a isso, mas são as regras da sociedade. Se achamos que estão mal, devemos fazer-nos ouvir junto daqueles que as podem mudar e não junto daqueles que as aplicam. Espero que compreendam. Em segundo lugar, mesmo que se ache que o salário mínimo é pouco digno, não se pode atacar o Martim (ou qualquer pessoa na sua circunstância) por haver pessoas em fábricas a recebê-lo. O Martim muito provavelmente contratou um serviço a uma outra empresa e é nessa empresa que se fazem as negociações salariais. Considerar que o Martim (ou qualquer pessoa na sua circunstância) tem o dever de, antes de contratar a empresa, saber o que vai lá dentro é de uma alienação (palavras caras) tremenda. Porque neste caso poderá parecer até simples (ainda que não o seja necessariamente), generalizar este raciocínio tornaria a vida habitual impraticável. Antes de contratarmos uma operadora de telemóveis, teríamos de ler detalhados recibos de vencimento dos últimos anos. Para comprarmos um móvel, teríamos de descobrir quem recolheu a madeira, a trabalhou e transportou e saber, depois, se todos tinham tido condições de trabalho boas. Antes de comprarmos um bonito lenço como o que Raquel Varela usava durante o programa do serviço público, teríamos de saber se a lojista tinha um bom salário, e se a transportadora tinha uma boa política de férias e se a fábrica era portuguesa, ou chinesa, ou vietnamita. Por sabermos que tudo isto é impraticável, criamos leis e instituições – algo que Raquel Varela deverá saber, dado que é Doutora do ISCTE. E com base nessas leis e instituições vamos vivendo e deixando viver, arranjando maneiras mais ou menos eficazes de fazer cumprir o estabelecido. O Martim provavelmente nem sabe quanto ganham os trabalhadores na fábrica que ele contratou. Mas não tem de saber. Da mesma forma que a Raquel Varela não tem de saber quanto ganhou quem produziu o seu lindo lenço. Ainda assim, teria ficado bem a Fátima Campos Ferreira, excelsa moderadora, perguntar. A bem do serviço público. E viva a revolução.
Eu não sei quem é o Vítor Cunha, mas fazia-lhe bem a leitura de um manual simples de economia do trabalho. É que a gente pode ser muito liberal e assim, mas há que impedir assaltos da ignorância.
Pessoalmente, acho que os programas escolares não deviam ser mexidos durante vinte anos, a não ser que descubram um novo planeta entre a Terra e Marte, mas a alteração do currículo de Matemática no 1º ciclo deixa-me perplexo. Escreve o Público que “a notícia” (Anúncio de novo programa de Matemática no 1º ciclo) “foi recebida com enorme surpresa por estas professoras [Associação Nacional de Professores de Matemática] e também, presume-se, pelo resto da comunidade educativa”. Eu cito outra vez: "e também, presume-se, pelo resto da comunidade educativa." O Público, esse jornal maravilhoso e de causas, presume que houve escândalo — não conferiu, mas presume, o que é suficiente. ("–Idalina, estou aqui a fazer a primeira página, sabes quantas pessoas morreram em Boston?" "–Aí umas três, presumo." "Tens a certeza ou presumes?" "Presumo, Alcipe." "É quanto basta. Três, é isso? E quanto ao programa de matemática, como estão a ser as reacções?" "Presumo que ande toda a gente fodida nas capitais de distrito." "É assim mesmo.") Para melhorar a coisa, a jornalista transcreve a afirmação (de uma das senhoras da ANPM) de que se trata de "um ministro que não é sequer matemático e sim economista". O Público, esse jornal maravilhoso e deontológico, sabia que Nuno Crato fez o mestrado em Métodos Matemáticos e um doutoramento (nos EUA) em Matemática Aplicada, é professor catedrático de Matemática e Estatística e foi presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. Sabia, mas não esteve para se maçar. ("Ó Idalina! Mas o Crato não é matemático?" "É, Alcipe. Mas as professoras dizem que não.") Que as senhoras professoras temam um programa em que os meninos tenham de saber a tabuada, isso já pia mais fino, porque é uma violência inusitada cometida sobre aqueles pobres seres que sabem manejar seis modelos diferentes de telemóvel mas não conseguem fazer uma soma de três parcelas. É o que eles fazem no 1.º ciclo. Eu sou contra as mudanças nos programas escolares durante cerca de trinta anos (acabo de prolongar um pouco a moratória), mas se for para impedir que se ensinem "matemáticas alternativas" com calculadora acoplada e, nessas idades, se insista nas "aprendizagens baseadas na mecanização de procedimentos e rotinas" em matemática, estou disposto a ponderar.