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Sá da Costa

por Tiago Moreira Ramalho, em 19.07.13

Sobre a livraria Sá da Costa e sobre os lamentos generalizados, dos quais partilho, apesar de não gostar especialmente da livraria em causa (desgostou-me mais o encerramento da novíssima e brevíssima Trama, para ser honesto; valorizo, contudo, a importância de uma livraria, ainda para mais com cem anos), diria que um pouco de iniciativa não seria mal-pensada. Entre os desolados clientes, poderia perfeitamente criar-se uma posse partilhada, de quotas, ou acções, ou o diabo, para que a coisa se aguentasse de pé. Com alguma inteligência, nomeava-se para gestor um tipo que perceba de livros e, pelo caminho, perceba de contas. No fim, era como pertencer a um clube privado, a que os fãs já pertencem, para o qual se pagariam quotas. Isso seria levar todo o lamento, frustração e manifestação pública às naturais consequências. É que lamentar tudo isto enquanto se compram livros na Fnac escapa pouco à tontice.

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publicado às 15:24


Coisas importantes

por Tiago Moreira Ramalho, em 07.07.13

Fez bem em expôr a minha emigração, o bom Frederico. Medroso que me entrasse areia pelas traseiras do computador adentro, desloquei-me à Caparica apenas na companhia de leituras menos virtuais e mais resistentes ao vento e aos solos arenosos. Tive muito tempo, porque tenho especiais antipatias pelos mergulhos em águas geladas, além de que repor a camada de creme que me boto a fim de me proteger dos UVs é processo moroso e de dispêndio considerável. A tenda, ademais, dava-me conforto e reserva suficientes para me aguentar uns dias em sério isolamento balnear. Nos entretantos, porque me mantenho cidadão informado e atento, parece que a bacia do Mediterrâneo continua o seu processo revolucionário em curso que vem desde Brutus. Nada que não se resolva com algum desprendimento. Ler, por exemplo, um conto de Sena, sobre um homem a quem custa a sentar tanto pela grandeza que não verga como pela dimensão da genitália doente, e a quem surgiam, sem grande aviso, também, fragmentos de poesia que lhe valeram, a ele, de muito pouco. Isto porque há coisas importantes.

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publicado às 21:17


Agora tudo correrá sobre rodas

por Frederico V Gama, em 02.07.13

O título mais português de hoje, na imprensa, vai para o jornal I: “Gaspar. O adeus de um ministro em ‘desvio colossal’ com o país”. Não li o texto, porque começa por estas duas sentenças: “Mal visto no país, malquisto no governo”. Eu aprecio bastante jornalistas e, de entre todos, tenho uma admiração ímpar por jornalistas que dão lições de moral e interpretam a vontade do povo. O povo malquistava Gaspar, tal como o governo. O povo, porque queria comprar viagens às Caraíbas em prestações, o governo porque queria fazer apostas destrambelhadas no crescimento, talvez mesmo auto-estradas e obras públicas que dessem emprego e fundos perdidos a empresas amigas que depois ajudam nas campanhas eleitorais e na imprensa de que são accionistas. Os meus companheiros de blogue até podem ter uma fé infinita no povo, mas um povo que aclama Arménio Carlos, que lê os artigos do Sr. Dr. Mário Soares, que pasma em estado de pré-orgasmo diante do Sr. Eng.º Técnico Pinto de Sousa e dá vivas ao Dr. António José Seguro não é um povo de confiança e, portanto, entendo que devemos demiti-lo e, em conformidade — e última necessidade — eleger outro. Dado não estarem reunidas as condições para eleger outro povo, porque no fundo até pode dar-se o caso de gostarmos deste, sugiro que de quinze em quinze dias se façam eleições para nomear ou confirmar governos que sejam do agrado do povo. O ministro Gaspar estava em desvio colossal com o país e portanto devia ser liminarmente afastado e ser substituído pelo Sr. Dr. Carlos Zorrinho, doutorado em Gestão da Informação, que entrará em delicodoce comunhão com o país, oferecendo espremedores de citrinos e telemóveis de última geração aos contribuintes e ao mesmo tempo zurzindo os hemiciclos com as suas piadas (de que só os alentejanos se riem, eu sei). Precisamos urgentemente de um ministro das finanças que não esteja em desvio colossal com o país, como aquele antigo secretário de estado do PS de que não sei o nome, mas pisca os olhos e é relativamente belfo. O ministro Gaspar era mal visto no país e malquisto no governo? Pois que o substituíssem. Agora tudo correrá sobre rodas. Aliás, corrijo: agora tudo vai correr sobre rodas, foda-se.

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publicado às 11:55


Snow Den

por Frederico V Gama, em 02.07.13

Isto chateia-me: estou de acordo com o Tiago Moreira Ramalho. Eu, se fosse namorado de uma jovem com os atributos especiais que dizem ser os da que dizem ser a namorada de Edward Snowden e ganhasse os 300,000 dólares por ano e tivesse uma casa no Havai — espiava com dignidade. Mas eu sou um covarde que preza o seu emprego e já sabia que os americanos espiavam os europeus, que espiavam os latino-americanos, que não espiavam ninguém, que eram espiados pelos norte-americanos, que eram espiados pelos chineses, que não eram espiados pelos sauditas, que eram espiados pelo russos, que espiavam Hong Kong, que não espiavam o Laos nem o Cambodja. As histórias de espionagem são quase sempre de segunda ordem. E sim, Snowden não disse, afinal, nada que não soubéssemos: que os americanos espiam mal e são destituídos de qualquer tipo de cautelas e não sabem instruir agentes duplos porque acham que a guerra fria já terminou. Ora, a guerra fria não só não terminou como é agora uma autêntica orgia. Edward Snowden disse que os norte-americanos vigiam o Facebook, o Twitter, o Google, o velho Outlook, o iTunes e o Bar da Tina em Cascais. Parece-me altamente provável, tirando o Outlook, que até eu era capaz de vigiar de um servidor em Castelo Branco. Portanto, Snowden, meu caro, escreve um livro com o material e vive durante uns anos dos rendimentos numa das ilhas Curilas, aí no Pacífico profundo. Depois, vende o material de novo ao Equador.

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publicado às 11:43


Exultemos

por Frederico V Gama, em 01.07.13

Agora é que vai ser. Por um momento é que vai ser. O povo exulta, Gaspar foi embora. Portas exulta. Zorrinho aplica-se em novas metáforas, todas elas de grande efeito nas escadarias do parlamento (daquelas que só os alentejanos se riem). Abreu Amorim ganha a câmara de Gaia por larga maioria. Arménio Carlos exulta. A direita se faz favor exulta gravemente e com tons de moral repenicada porque o mal de todos os males acaba de sair do governo. O Dr. António José Seguro pede uma audiência ao presidente da República e, de caminho, vai pedir a demissão de todo o governo, o regresso do bem, a taxa de desemprego inferior à média europeia e a satisfação do povo. O povo, esse, exulta também porque o preço dos telemóveis vai baixar e o décimo terceiro mês vai ser reposto na altura exacta. A direita se faz favor gostava de Gaspar, mas isso era se Gaspar, caralho, fizesse reformas e se, com as reformas, contentasse o povo inteiro, baixasse os impostos e subisse os impostos, cortasse na saúde e aumentasse os gastos na saúde, fosse social e acabasse com o rendimento mínimo, fetejasse a lavoura e acabasse com a agricultura, isso sim. Há melhor remédio, e eu proponho-o com todas as letras: o Presidente não deve ir para as Selvagens e, em vez disso, demite todo o governo. O povo fica muito contente e deixa que o PS, o PCP, o BE e até o PP, formem um governo que agrade aos portugueses e seja chefiado pelo Dr. António José Seguro, que compreende os portugueses melhor do que ninguém. O Gaspar é um criminoso e merece ir embora, Mário Nogueira exulta, Arménio Carlos deixa de incitar o povo à revolução, e o fedelho do BE de que me esqueci o nome, mas que é o menino de ouro do BE com aqueles casaquinhos de bombazine de cor de merda, vai a ministro da solidariedade, os ricos pagam a crise e os taxistas voltam a odiar os pretos. A Dra. Ana Drago também vai a ministra e o Prof. Boaventura fica procurador-geral e nas horas livres escreve manuais escolares para crianças que vão participar na vida cívica com brio e elegância. Sendo assim, exultemos, mudemos o disco para Jerónimo de Sousa dançar a chula e Sócrates vai a eurodeputado. O povo fica contente. Quem somos nós para desmenti-lo? Viva o povo, viva. 

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publicado às 22:19


Parecem bandos de pardais à solta, os putos

por Tiago Moreira Ramalho, em 20.06.13

A tenra idade, querido leitor, é-o transversalmente na gente. Tudo é tenro, especialmente o cérebro, órgão excepcional e de dupla face, por nos dar a garantia de superioridade intelectual face à besta, mas também por ser dele que provém a estupidez, propriedade que, atenção, não se deve confundir com ignorância, mas sim com o atrevimento associado a ela. Venho, pois, falar-vos de jovens. Jovens em quem a tenrura do cérebro se tem manifestado especialmente propiciadora do disparate (à juventude permite-se tudo, bastando para tanto a larga esponja do «disparate», coitadinhos). Há uns dias veio o Miguel Pires da Silva, o muito bem compostinho líder da excelsa JP, explicar-nos, com uma proverbial fealdade, que não, que não, que isso dos maricas, ou, nas suas palavras, isso dos «eles», era tudo muito pouco natural. Era por isso que era muito (muitíssimo) contra o casamento d’«eles» e contra a adopção d’«eles», que para ele (sem aspas, porque ele não é nada maricas) não traz saúde a ninguém. Além disso, preocupa-se o Pires da Silva (temos de começar a tratá-los como grandes, para se sentirem especiais) com a putativa vontade qu’«eles» têm de transformar Portugal «num imenso arco-íris de uma ponta à outra», fazendo aqui uso de uma bonita figura estilística que denota franco conhecimento da herança literária que os jovens deste tempo têm. Guardado o assunto do Pires da Silva, que me permitiu rir um pedacinho e gozar outro tanto, porque, enfim, a vida é curta e eu já vou entrado nos vintes, pensei para comigo que aquilo era excesso idiossincrático, uma excentricidade (mas não como as do Bentham, que possivelmente se referia a «eles»), e continuei a depositar fé nos jovens, os meus compagnons de route para o que resta. Tratou-se, como poderá o leitor um pouco mais envelhecido facilmente adivinhar, de uma precipitação (própria da idade, permita-se-me a auto-complacência). Outros jovens, agora da JSD (os jovens, em geral, gostam de agrupamentos), vieram perguntar ao Ministro da Educação quanto custam os sindicatos. Não sei se será um resquício da idade dos «porquês» ou tontice franca, por sabermos que não é movimento inocente e que em tempos de fraca carteira, falar de dinheiro dá sempre bom resultado. Em qualquer caso, os jovens da JSD, certamente porque a vida ainda foi curta e porque nem sempre as escolhas são as óptimas, deveriam, quando tiverem folga parlamentar agora nos próximos meses, pegar nuns livrinhos que expliquem bem o «custo» dos sindicatos. Senão, qualquer dia começamos a perguntar quanto é que a JSD custa ao Estado. Uma pergunta que talvez acabasse, dadas as recentes demonstrações de serviço, por fazer algum sentido.

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publicado às 11:25


O antro de corrupção

por Tiago Moreira Ramalho, em 15.06.13

Trabalhadora da ERT chorosa com o encerramento da cadeia. «Cortesia» do Guardian.

 

1. O recente encerramento da televisão nacional grega foi pretexto assaz razoável para um conjunto de reflexões sobre tudo isto. Por conveniência, comecemos por enunciar o que aconteceu. O governo grego decidiu, quase de surpresa, sem debate público ou pré-aviso razoável, encerrar a cadeia ERT (a homóloga da RTP, se quisermos). Todas as televisões e rádios públicas ficaram automaticamente sem sinal. No seguimento do sucedido, e das expectáveis manifestações de repúdio, quando não de simples perplexidade, o governo veio a terreiro (é como se diz) dar conta que a cadeia pública tinha de fechar por ser um «antro de desperdício» e porque enquanto os cidadãos gregos faziam sacrifícios, não poderia haver «vacas sagradas».

2. A forma como recebemos as notícias cá foi tristemente pobre. Digo isto porque o enfoque dado pelos jornalistas portugueses ao facto de 2500 empregos estarem em risco foi completamente desajustado. Uma cadeia de televisão pública não é o mesmo que um parque industrial. O valor acrescentado de um serviço público de televisão está longe de ser comparável ao de uma central de produção de polpa de tomate; por isso, a forma como o tratamos não pode ser a da velha lógica do produto perdido e do desemprego gerado. Aquilo que está realmente em causa, e os jornalistas deveriam ser os primeiros a apontá-lo, é o bom funcionamento da democracia grega, que por estes dias já vai pela hora da morte. O serviço nacional de televisão e rádio acaba tendo uma capacidade rara para manter, ainda que fracamente, alguns tecidos que unem a sociedade. Além disso, há o escrutínio da actividade política, tão necessário em tempos de calamidade, e que facilmente se esquece no sector privado, quando as vacas, sagradas ou não, são menos gordas. Não será por acaso que não há nenhum país na União Europeia sem serviço público de televisão.

3. Voltando às bordas do mar Egeu, é também relevante a forma como todo o processo foi conduzido. E aqui entramos num problema mais sério, mais fundo, que é o do voluntarismo com que uma classe política se submete à sua própria humilhação. (Sim, quando falamos de um acontecimento destes, falamos de uma humilhação.) Note-se que o governo grego não explicou ao povo que era obrigado a encerrar o serviço pela falta de dinheiro, isto é, que não queria, mas que tinha de o fazer. Muito pelo contrário. O ministro das finanças grego falou abertamente em controlo de desperdícios e corrupção, e no fim de «vacas sagradas». Significa isto que a classe política grega abraçou a causa, ou assumiu publicamente que a abraçava. Mais do que cumprir aquilo a que é obrigado, o governo grego defende as virtudes destes disparates monstruosos. Trata-se de uma espécie de manifestação da Síndrome de Estocolmo, a qual leva às últimas instâncias a ideia de uma humilhação que deixa de ser imposta.

4. Felizmente, nem todos enlouquecemos. Claro que os gregos já estiveram mais sãos, mas depois do espectáculo de sinal fechado, já há quem pondere o regresso parcial ou total do serviço. A coligação parece ter ficado especialmente afectada. Os trabalhadores da ERT continuaram nas instalações e, por sua própria iniciativa, mantiveram o serviço aberto via Internet. A União Europeia de Radiofusão garantiu a transmissão via satélite do canal noticioso. Por todo o lado, têm surgido apelos para a reabertura do serviço. Pode ser, por tudo isto, que o serviço regresse rapidamente. De qualquer modo, fica o precedente perigoso de como facilmente se abdica de uma parte tão relevante da vida de um país e de como surge até um especial voluntarismo para o fazer. Tentado escapar-me a um reductio ad hitlerum, é bom lembrar que algo assim só aconteceu uma vez à Grécia no passado: em 1941, quando os Nazis encerraram o serviço público de rádio no seguimento da ocupação.

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publicado às 15:41


Divulgação honesta de uma tolinha à solta

por Tiago Moreira Ramalho, em 28.05.13

Imagem de topo do blogue da jornalista Maria Teixeira Alves. Está muito contente.

 

Tive um tempo em que consumia blogosfera como quem respira. Porradas de blogues, centenas de posts. Tinha tempo e, mais do que isso, parvoíce. Acontece que fui largando muita coisa e agora leio pouco, muito pouco do que se faz em blogues. Porque há que seguir a portugalidade, leio o que escrevem os meus amigos ou o que escrevem aqueles cujas opiniões realmente contam alguma coisa. Possivelmente larguei muita coisa boa. Felizmente, deixei também de acompanhar muita tolice. É o caso aqui da Maria Teixeira Alves, que parece que é jornalista no Diário Económico e que escreve onde em tempos escrevi eu: no Corta-Fitas.

A jornalista Maria (on se tutoie, quase) começa por, não sem um travo amargo, agradecer aos deputados do PSD e do CDS que viabilizaram a co-adopção. Anuncia-lhes que (botemos aqui um bom sic) «a partir de hoje não contam com o meu voto para nada, nem, com o meu apoio.» Nem! Como diria o velho Camilo, se estas «feras objurgatórias» tivessem a «gramática à porção do fel, o governo havia de pôr as mãos na cabeça e demitir-se». Não têm, por isso não demite. Mas de onde nasce tanta revolta em Maria, excelsa jornalista do Diário Económico? Maria, amiga da maiúscula espumosa, ataca os pobres incautos que acreditam que as instituições que albergam crianças sós no mundo são piores que um casal homossexual. E porquê? Bom, porque segundo a jornalista Maria, educada senhora, nas instituições as crianças não correm o risco de chegarem à idade adulta e serem seduzidas pelos pais. Ora já viram a tontinha?

A pobre cabecinha da desgraçada da jornalista Maria parece estar em tumulto. Vai ali uma profunda diarreia (diz aqui o Rui que isso mata, ó jornalista Maria). Os enganos – nada ledos e nada cegos – são mais que muitos. Em primeiro lugar, julgo que não há nenhuma criança, inserida em qualquer família, que não corra o risco de ser seduzida pelos pais na adolescência. Que eu saiba, todos os casos de violação dentro das famílias conhecidos até hoje aconteceram no seio de famílias «naturais» (a jornalista Maria diz que a natureza é homofóbica; bota ponto de exclamação e tudo). Por isso infiro que a jornalista Maria quer dizer apenas que os homossexuais criam riscos ainda maiores. (Que patetinha. Dá vontade de abraçar.) Riscos maiores que os que existem numa família «natural» e, pasmemo-nos, maiores que os existentes numa instituição de acolhimento. A jornalista Maria andou distraída nos últimos anos e ignora o que tem acontecido nos últimos bons séculos. Com que então as instituições são um paraíso impoluto onde as criancinhas podem crescer livres das insinuações e ataques predatórios de gente doente? A pobre da Mariazinha, ai tão linda, tão destrambelhadinha. Algum médico que a recolha, antes que ela faça mal a alguém.

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publicado às 14:05

Raquel Varela fixando a objectiva com olhar profundo.

 

Anda um espectro (há que fazer a apologia do cliché) pelo Portugal – o espectro da Raquel Varela. Diz que é doutora do ISCTE e percorre com alguma facilidade os meios de comunicação, poluindo-nos a mente simples com os seus devaneios complicados. Desta feita, a Doutora Varela (isto assim dá logo ares de Aerius e Paracetamol) foi amavelmente convidada pela Fátima Campos Ferreira para o grande debate da nação que é o Prós e Contras, consigo, todas as semanas. Lá no Prós e Contas, além da Doutora Varela, havia um rapagão com olho para o negócio que vende t-shirts para «países estranhos» como a Inglaterra (ninguém lhe perguntou a origem de tanta estranheza, para grande pesar deste vosso que vos escreve). Mal compreendeu a Doutora Varela que o rapaz não era um intelectual com vasta obra publicada no estrangeiro, mas sim um vil burguês, mandou que se interrompesse o bailado. Era importante, pelo menos para ela, esclarecer umas coisas. Então perguntou rapidamente ao Martim, tratando-o por tu, com uma proximidade que afronta, se por acaso as camisolinhas deles eram produzidas na China por gente a ganhar dois dólares por dia. O Martim disse que por acaso não, que era cá na terra, no nosso Portugal. Evidentemente, isso não bastava. A Doutora Varela lançou logo a questão importante: e os operários fabris, ganham salário mínimo? É que a organização do não-sei-quê diz que tal. O rapaz arrumou com o assunto e seguiu-se choradeira no blogue.

Agora que já alongámos o espírito e nos permitimos umas malandrices, vamos passar a proporcionar ao leitor curioso uma análise sólida e fundamentada da questão. Há três eixos (porque nós vemos a três dimensões – é importante para a compreensão da realidade) relevantes aqui. O primeiro prende-se com o valor do Martim Neves. O segundo prende-se com a razão da Raquel Varela. O terceiro prende-se com a desonestidade da Raquel Varela. Por partes. Um, dois...

 

Marie Antoinette.

 

Eu só sei do Martim Neves aquilo que as pessoas que viram o Prós e Contras sabem: é um miúdo de 16 anos que tinha uma coisa que gostava de fazer (desenhar trapinhos) e teve a ideia de arranjar ali uma ocupação, um negócio. Felizmente, e apesar da idade, teve algum sucesso. As roupas ganharam compradores, invadiram dois ou três mercados internacionais e o barquinho prospera. Diz que os estudos vão indo e, pelo que percebi, ainda patrocina um desportista qualquer. No topo de tudo, recorre a uma fábrica portuguesa para a confecção da mercadoria, mantendo tudo em família, como muito compete ao cidadão empenhado e patriota. O Martim, independente do que nos diga a história dos conflitos sociais, está a fazer, tudo leva a crer, algo de bom e de muito valor: investe numa ambição sua, não tem ar de explorar miseráveis e, à falta de prova em contrário, é respeitador da lei e da norma. 

No que disse ao Martim Neves, Raquel Varela tem razão apenas numa coisa: o salário mínimo é baixo. Também é por isso que se chama salário mínimo – nunca, em momento algum o acharemos bom. Que se compare com facilidade o salário mínimo português com os dois dólares diários do sudeste asiático, já me parece um pedacinho desonesto, mas deixemos isso para o próximo parágrafo. O que é importante compreender é que o facto de ganhar um salário mínimo ser melhor que não ganhar salário nenhum não invalida que o valor seja baixo. A melhor hipótese nem sempre é uma boa hipótese, enfim. De qualquer forma, a discussão sobre o salário mínimo, ainda que importante, não foi pertinente. Mais não fosse por uma razão simples: é que na verdade ninguém ali tinha a capacidade de assegurar que quem produzia as tais roupinhas estava nessa situação. Mas de novo a terceira parte deste proveitoso artigo está a saltar-nos em frente. Dêmos-lhe, pois, espaço.

 

Bertrand Russel, enquanto assistia ao Prós e Contras.

 

A desonestidade de Raquel Varela no caso em questão é – utilizemos uma palavra catita – multidimensional. Torna-se inclusivamente difícil organizar o pensamento perante tudo isto. Para facilitar, vamos saltar por cima do tom acusatório com que lançou as perguntas. Vamos também contornar a insistência em dizer que são chineses a fazer a roupa, quando todos sabemos que foram portugueses. Vamos ainda esquecer que colocou quase no mesmo patamar os salários abaixo do limiar da pobreza e o salário mínimo português. Vamos apenas ao essencial: Raquel Varela questionou a moralidade da actividade profissional de Martim com base na possibilidade de haver, devido a ela, pessoas a receberem o salário mínimo. Isto, só assim, sequinho, sem comentários sobre as viagens e as bolsas de Raquel Varela, já nos chega para uma boa conversa. Ora vejamos. Em primeiro lugar, e porque isto é o mais simples, mais directo, mais singelo, é preciso dizer que o salário mínimo, ao existir, traz como consequência natural que algumas pessoas o recebam. Se ninguém recebesse o salário mínimo, isso significaria que o valor era tão baixo que nem os porcos exploradores o pagariam. O salário mínimo, digamos assim, está lá mesmo para «ser usado». Tem como objectivo vedar situações de exploração, entendendo-se, por isso, que pagá-lo não constitui exploração. Claro que podemos divergir quanto a isso, mas são as regras da sociedade. Se achamos que estão mal, devemos fazer-nos ouvir junto daqueles que as podem mudar e não junto daqueles que as aplicam. Espero que compreendam. Em segundo lugar, mesmo que se ache que o salário mínimo é pouco digno, não se pode atacar o Martim (ou qualquer pessoa na sua circunstância) por haver pessoas em fábricas a recebê-lo. O Martim muito provavelmente contratou um serviço a uma outra empresa e é nessa empresa que se fazem as negociações salariais. Considerar que o Martim (ou qualquer pessoa na sua circunstância) tem o dever de, antes de contratar a empresa, saber o que vai lá dentro é de uma alienação (palavras caras) tremenda. Porque neste caso poderá parecer até simples (ainda que não o seja necessariamente), generalizar este raciocínio tornaria a vida habitual impraticável. Antes de contratarmos uma operadora de telemóveis, teríamos de ler detalhados recibos de vencimento dos últimos anos. Para comprarmos um móvel, teríamos de descobrir quem recolheu a madeira, a trabalhou e transportou e saber, depois, se todos tinham tido condições de trabalho boas. Antes de comprarmos um bonito lenço como o que Raquel Varela usava durante o programa do serviço público, teríamos de saber se a lojista tinha um bom salário, e se a transportadora tinha uma boa política de férias e se a fábrica era portuguesa, ou chinesa, ou vietnamita. Por sabermos que tudo isto é impraticável, criamos leis e instituições – algo que Raquel Varela deverá saber, dado que é Doutora do ISCTE. E com base nessas leis e instituições vamos vivendo e deixando viver, arranjando maneiras mais ou menos eficazes de fazer cumprir o estabelecido. O Martim provavelmente nem sabe quanto ganham os trabalhadores na fábrica que ele contratou. Mas não tem de saber. Da mesma forma que a Raquel Varela não tem de saber quanto ganhou quem produziu o seu lindo lenço. Ainda assim, teria ficado bem a Fátima Campos Ferreira, excelsa moderadora, perguntar. A bem do serviço público. E viva a revolução.

 

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publicado às 23:45


Perturbação, perturbação

por Frederico V Gama, em 21.05.13

Isso eu não sei, mas fiquei perturbadíssimo. A descrição do fenómeno ultrapassa aquilo que a moral deste blog permite registar, mas hei-de saber lidar com o problema. Serei um groupie. Vou reler O Capital. Ainda tenho os restos da biblioteca.

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publicado às 18:01





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