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Em 1910, Rudyard Kipling, escritor de relativo mérito, escreveu o poema If, que ficou igualmente conhecido por Carta a um Filho, apesar de não ser inspirado pelo seu filho, John, que viria a morrer na I Guerra Mundial, em 1915. Como furioso imperialista que era, Kipling arranjou maneira de o filho, embora afectado por problemas de visão, integrar as Irish Guards. Outro pai menos belicista teria arranjado uma cunha para livrar o filho da Guerra. Kipling, vitoriano e estóico, arranjou uma cunha para o filho se alistar e, posteriormente, morrer. Após a morte de John, o Prémio Nobel de 1907 escreveu estas linhas culpadas e reveladoras: "If any question why we died / Tell them, because our fathers lied." No poema If não há mentiras, nem triunfalismo. Há resiliência, estoicismo, a pregação de uma moral que transcenda os acidentes de percurso. É quase um manual de vida em oito quadras e trinta e duas estrofes. O poema termina com o famoso “you’ll be a Man, my son!”, ainda que para se chegar a ser um homem tenha de se ultrapassar todos aqueles ses que se vão espalhando no poema. Ainda hoje, If continua a ser um dos poemas preferidos dos ingleses talvez porque a sua mensagem é clara e não há ali indícios de modernismo, simbolismo ou paulismo. Aquilo é poesia pragmática, para as massas, acessível a todos, “sem frescura”. Se fosse mesmo uma carta a um filho, teria o tom falso e grandiloquente que os pais distantes escolhem para embelezar os raros momentos em que se dedicam à tarefa, para eles bissexta, da paternidade. O mais certo é que o filho começasse a bocejar e pedisse ao pai para lhe ler outra coisa qualquer, por exemplo, algo sobre a descoberta da estrutura da vida. Mas só um filho teve essa sorte. Em 1953, o jovem Michael Crick, de doze anos, estudava num colégio. A 19 de março desse ano o pai, Francis Crick, escreveu-lhe uma carta que começava assim: “Meu Querido Michael, é possível que o Jim Watson e eu tenhamos feito uma descoberta da maior importância.” A carta prossegue no mesmo tom científico, com diagramas e explicações, isto antes de Crick e Watson terem publicado na Nature o trabalho que haveria de os imortalizar. Aquilo era informação em primeira mão, de pai para filho, numa carta em que à excepção do início e do final (“Lots of love, Daddy”, e de algumas notas pelo meio (“read it carefully”, “read this carefully”), nada sugere uma relação paternal. Por vezes, assemelha-se à aula de um professor entusiasmado. O único assunto da carta é a descoberta da estrutura do ADN, como se Crick estivesse tão imerso no seu trabalho e tão surpreendido pelas descobertas, que não fosse capaz de pensar em mais nada. Quase no fim, uma frase ganha força, sobretudo se pensarmos na dimensão da descoberta e no contexto relativamente neutro em que é revelada: “In other words we think we have found the basic copying mechanism by which life comes from life.”
Temos, então, uma carta a um filho que não se destinava ao filho do autor, em que o poeta fala sobre a vida e a forma como a devemos encarar na glória e no desespero. Depois, temos uma carta a um filho que não se parece nada com uma carta a um filho porque o seu único tema é, compreensivelmente, uma das maiores descobertas científicas de sempre e que nos permite perceber o funcionamento da vida, embora nada nos diga sobre como devemos vivê-la. O filho de Kipling morreu aos 18 anos, na batalha de Loos, empurrado para a frente pelo voluntarismo imperialista do pai. O filho de Francis Crick leiloou recentemente a carta que o pai lhe mandou em 1953. O documento foi comprado por um anónimo por mais de 6 milhões de dólares. As duas histórias dizem-nos muito sobre o que é a vida e sobre o que é a vida, palavras homógrafas mas com significados muito diferentes.