A biografia memorável não é a da escrita asséptica dos especialistas. Os códigos científicos toldam a inspiração, a ânsia de neutralidade empobrece o discurso, um tema cativante fica preso numa teia de referências externas e palavreado difícil de mastigar, ambos ali encaixados para que todos vejamos quão bem o autor se masturba. A boa biografia deve somar hipóteses de interpretação a uma moral para a história, não estéreis 'subsídios para a compreensão' de blábláblá. Quero que arrisque conclusões, não que fuja a elas alegando falsa humildade. A vida e a obra não são só sequências de acontecimentos, são também as motivações que lhes subjazem, mas que só um grande autor destrinça.
Por isso normalmente prefiro a biografia da boa ficção: é tão real como se o fosse e normalmente ganha em profundidade. Como quando li, nestes dias, 'A Mancha Humana' de Philip Roth e sonhei vir a conhecer alguém vivo tão bem quanto a admirável Faunia Farley, a iletrada empregada com um terrível passado e uma desencantada e darwiniana opinião sobre toda a gente. Ou quanto Coleman Silk, o obstinado e autoritário ex-reitor que foi capaz de abandonar a família mas jurou vingança quando o cinismo dos seus inimigos na universidade o queimou na praça pública com uma injusta acusação de racismo. Ou ainda quanto Delphine Roux, a cínica-mor, com uma carreira académica brilhante e um lado afectivo subnutrido (y que los hay, los hay).
Acima de tudo, gosto de uma biografia que vergue as minhas conclusões precipitadas, uma após a outra, até à conclusão final, que - como no caso de Silk - pode até divergir um pouco da do narrador. Compreender as pessoas, ou as boas personagens, é aceitá-las gostando ou não delas. Com as personagens de 'A Mancha Humana' posso, sem o temor do costume, dizer ter aprendido sobre as pessoas mais do que aprenderia com qualquer calhamaço de História ou estudo de genética.
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